Carlos
Nougué
Artigo Primeiro
Se o chamado magistério conciliar é infalível (3)
ao modo extraordinário
Diferentemente
de qualquer outro concílio ecumênico, o Concílio Vaticano II manifestou desde o
início a intenção de não definir novos dogmas, ou seja, de não tratar
infalivelmente doutrina sobre a fé e os costumes.[2]
Segundo esse
mesmo espírito, os papas pós-conciliares (que também se chamam conciliares)
nunca quiseram recorrer ao exercício supremo de sua autoridade. O único ato de
magistério pós-conciliar que pareceu alcançar a solenidade de uma definição ex
cathedra foi a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, de
João Paulo II, sobre a impossibilidade da ordenação sacerdotal de mulheres.
Leia-se a conclusão do documento: “Com o fim de afastar qualquer dúvida acerca
de uma questão de grande importância, que diz respeito à própria constituição
divina da Igreja, em virtude de meu ministério de confirmar na fé os irmãos,
declaro que a Igreja não tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação
sacerdotal às mulheres, e que este ditame deve ser considerado como definitivo
por todos os fiéis da Igreja”. Sucede porém que o então Cardeal Ratzinger,
traduzindo a intenção de João Paulo II (e com a autorização deste,
naturalmente), logo diria a respeito desta carta: “Trata-se de um ato do
magistério autêntico ordinário do Sumo Pontífice, e portanto de um ato não
definitório nem solene ex cathedra, ainda que o objeto deste ato
seja a declaração de uma doutrina ensinada como definitiva, e por conseguinte
não reformável”.[3]Não deixa de assombrar: o ato não
é definitivo, mas o objeto, sim... (relembrem-se as noções dadas nas postagens
anteriores). Este modo de exercício do magistério pontifício é inédito, e
transforma e embaralha radicalmente o sentido de “extraordinário”. Tente-se
entender: João Paulo II quer pôr fim às disputas com relação à ordenação de
mulheres, mas quer fazê-lo sem dar à sua própria declaração o caráter de
definição ex cathedra. Um
ato não infalível com objeto infalível!... Ora, se acontecem disputas
com respeito a verdades afirmadas por magistério ordinário universal, é por não
terem sido ensinadas em um único ato que não deixasse dúvidas quanto à sua
autoridade. Por isso, os pontífices punham fim a essas dúvidas mediante uma
definição ex cathedra, que obriga por si mesma. Mas agora João
Paulo II julga melhor não valer-se do peso de sua própria autoridade.[4]
Devemos
perguntar-nos agora, portanto, por que o magistério conciliar se empenha em
evitar expressar-se infalivelmente de modo extraordinário.
As autoridades conciliares agem assim
porque adotaram uma atitude liberal
1.º A
autoridade da Igreja segundo o liberalismo
A verdade
torna o homem livre (Jo. 8, 32), e por isso o homem reto considera sumamente
importante encontrar um mestre de grande autoridade que lhe revele o valor das
coisas com respeito às quais deve exercer seu livre-arbítrio. Mas para a
mentalidade liberal, radicalmente corrupta, a relação entre liberdade e autoridade é
um verdadeiro conflito. Para o liberalismo, com efeito, a liberdade individual
é o valor pessoal supremo; e, consequentemente, de todas as liberdades
pessoais, a mais excelente é a liberdade de pensamento. Por isso, se uma
autoridade impõe sua doutrina sem deixar a menor possibilidade de divergência,
isso parecerá aos liberais uma opressão do espírito. Seria de pensar, portanto,
que para os liberais – como para os anarquistas – não deveria haver nenhuma
autoridade. Mas não é bem assim. Se o homem fosse um animal solitário e não
social ou político, não haveria o referido conflito; mas, como vive em sociedade,
dá-se o problema de conjugar as liberdades individuais com as exigências da pólis ou
comunidade. Por isso, para o “católico” liberal,[5] temos necessidade de certa autoridade.
Para ele, o católico medieval, renunciou à liberdade de pensamento e entregou
ao magistério da Igreja o poder absoluto de ensinar: a autoridade suprimiria
assim a liberdade. O liberal protestante sacudiu totalmente o jugo desse
autoritarismo doutrinal, passando a relação com Deus a ser puramente
individual: aqui, a liberdade suprime a autoridade. Mas não é difícil constatar
que as comunidades protestantes se dividem ao infinito, justo porque carecem de
unidade doutrinal mínima. É por isso que o liberal “católico” sabe que não se
pode evitar totalmente o conflito entre liberdade e autoridade, e que portanto
é preciso tolerar certo exercício de autoridade doutrinal.
Para melhor
entendê-lo, assinalem-se três diferenças entre a maneira
tradicional de entender a autoridade na Igreja e o modo liberal.
• Primeira, quanto
à liberdade. Para o católico tradicional (perdoe-se a redundância), a
autoridade aperfeiçoa a liberdade, porque permite ao homem escolher com
certeza o que mais lhe convém. Por isso é que o católico celebra cada
definição do magistério da Igreja como um novo terreno ganho para o uso seguro
de sua liberdade. Para o liberal, todavia, a autoridade restringe a liberdade,
razão por que, embora tenha de reconhecer que a autoridade é necessária para
manter a unidade, lamenta como uma perda ou derrota cada definição do
magistério da Igreja – e quer que o exercício deste se reduza ao mínimo
possível.
• Segunda,
quanto a seu princípio. Para o católico tradicional, o magistério da Igreja é a
regra próxima da fé com respeito a todos os cristãos, porque
só a ele lhe foi prometida a assistência do Espírito Santo para que conservasse
integralmente e propusesse indefectivelmente o depósito da fé.[6] Para o liberal, em
contrapartida, o sentir comum dos fiéis é que é a regra próxima do magistério,
porque a assistência do Espírito Santo teria sido prometida em primeiro lugar à
comunidade dos fiéis para viver em cada época o Evangelho, e só em segundo
lugar ao magistério, mas tão somente para compreender, expressar e autorizar o
que o Espírito diz ao conjunto dos fiéis. Como escreve o Padre Álvaro Calderón
em A Candeia Debaixo do Alqueire, “não seriam os fiéis os que devem
ler as atas do magistério, mas o Magistério o que deve ler o coração dos
fiéis”.
• Terceira,
quanto à sua finalidade. Para o católico tradicional, o magistério está para os
fiéis assim como o professor está para as crianças: tem um ofício eminente que
se ordena a ensinar com certeza. Para o liberal, no
entanto, o magistério está para a comunidade eclesial assim como o moderador
está para uma mesa de debate: tem um ofíciodependente que se ordena
a unificar pareceres.
[1] Como já se há de ter
notado, a palavra magistério refere-se tanto aos atos
doutrinais dos papas e dos bispos como aos mesmos papas e bispos. Assim, magistério
conciliar significa tantos o conjunto de atos doutrinais dos papas que
seguem o Concílio Vaticano como estes mesmos papas; etc.
[2] Com efeito, disse Paulo VI:
o Concílio Vaticano II “evitou promulgar definições dogmáticas solenes que
comprometessem a infalibilidade do magistério eclesiástico” (Audiência de 12 de
janeiro de 1966,Documentation catholique, 1966, n. 1466, col. 418-420).
[4] Aliás, o próprio João Paulo
II, num discurso à assembleia plenária da Congregação para a Doutrina da Fé,
assimilou o modo de exercer a autoridade na Ordinatio sacerdotalis ao
de suas cartas encíclicas doutrinais, que certamente não contêm definições ex
cathedra. – Mas há que saber ainda se a Ordinatio sacerdotalis é
de algum modo infalível. É o que se verá mais adiante nesta série.
[5] O “católico” liberal só faz
parte da Igreja ao modo como um tumor maligno se diz daquele que o porta. Daí
as aspas.
[6] Como se voltará a ver, e
então detidamente, a assistência do Espírito Santo dá-se de algum modo ou
quando estão presentes, propriamente ou analogamente, as já vistas quatro
condições vaticanas, ou quando se trata de doutrina certa – ou seja, tudo o que
o magistério conciliar evita, justo porque, em vez de impor sua autoridade, ele
a depõe.
FONTE: www.estudostomistas.com.br
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