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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (II)



Carlos Nougué

Artigo Primeiro

Se o chamado magistério conciliar é infalível (1)[1]

O magistério conciliar, ou seja, o do Concílio Vaticano II e dos papas posteriores, definitivamente não goza do carisma da infalibilidade. Com efeito, há dois modos de exercer o carisma da infalibilidade: um é extraordinário, enquanto o outro é ordinário e universalcomo se verá pouco adiante. Conquistadas porém pelo liberalismo, as autoridades conciliares[2] não quiseram ensinar com infalibilidade segundo o modo extraordinário; e pelo mesmo motivo seu magistério ordinário não alcança o grau de universal. Desse modo, o magistério conciliar não é infalível nem poderá vir a sê-lo de maneira alguma, e isso é assim justamente porque as autoridades eclesiásticas se mantêm em seu liberalismo.[3] Explique-se.

O que se acaba de dizer pressupõe a doutrina segundo a qual há tão somente dois modos de o magistério da Igreja ser infalível. Afirmaram-se, ademais, três coisas que decorrem de algum modo da mesma doutrina. Com efeito, segundo uma ordem de evidência, a primeira dessas coisas é o fato manifesto de que as autoridades conciliares não desejaram nem desejam ensinar segundo o modo extraordinário do magistério da Igreja; a segunda, que resulta dessa mesma atitude, é sua mentalidade liberal; a terceira, que resulta do mesmo, é que seu magistério ordinário nunca poderá vir a ser universal. A conclusão, necessária, não só afirma o simples fato de que não houve infalibilidade no Concílio Vaticano II, mas assinala ainda que não pode havê-la de modo algum (ou seja, nem infalibilidade extraordinária nem infalibilidade ordinária universal) enquanto os papas conciliares não renunciarem à mentalidade liberal. Antes porém de demonstrá-lo, é preciso insistir nas noções centrais da doutrina referida mais acima.

Acerca do magistério da Igreja[4]

Nosso Senhor Jesus Cristo transmitiu à Igreja o poder de ensinar em seu nome e fundada em sua autoridade: “Ide e ensinai, porque quem vos ouve, a mim me ouve”. E é a este mesmo poder comunicado por Cristo que chamamos magistério da Igreja. É um dom único e permanente, que durará indefectivelmente até ao fim dos tempos (quer dizer, até à Parusia ou segunda e definitiva vinda de Cristo). Mas devemos conhecer, com respeito a ele, o sujeito que participa dele ou a quem é transmitido, o objeto que o especifica e os atos em que é exercido.

• O sujeito do magistério eclesiástico

O sujeito do magistério eclesiástico são chamados órgãos ou instrumentos; e são chamados assim porque, falando propriamente, o poder ou autoridade só o mesmo Cristo a tem. Cristo é o mestre principal, e qualquer outro possui tal autoridade apenas como instrumento de Cristo.
Mas, se consideramos o sujeito do magistério eclesiástico quanto à maneira de participar da autoridade, é preciso distinguir os órgãos em autênticos e subsidiários. Os órgãos autênticos participam da autoridade de Cristo de maneira habitual e própria, enquanto os órgãos subsidiários o fazem de maneira transeunte (ou transitória) e delegada. Só os órgãos autênticos podem dizer-se propriamente “mestres” na Igreja.[5]
As pessoas que constituem os órgãos autênticos são o papa e os bispos. Mas o papa detém a autoridade magisterial de modo pleno, enquanto os bispos a detêm de modo não pleno. Se no entanto se consideram tais pessoas com relação a seus atos magisteriais, devem distinguir-se quatro sujeitos:
◊ o papa sozinho;[6]
◊ o papa com os bispos reunidos em concílio;
◊ os bispos dispersos mas em comunhão com o papa;
◊ os bispos sozinhos.
Com respeito aos órgãos subsidiários, devem distinguir-se os papais dos episcopais, ou seja, os sujeitos ao papa e os sujeito aos bispos. Os que recebem delegação imediatamente do papa (congregações romanas, comissões pontifícias, delegados apostólicos, etc.) participam mais plenamente do magistério eclesiástico que os que a recebem dos bispos (padres párocos, conselhos de presbíteros, comissões diocesanas, etc.). Devem distinguir-se ainda segundo a condição das pessoas, isto é, se se trata de simples fiéis (peritos em diversas ciências ou artes), ou se se trata de pessoas qualificadas por qualquer tipo de autoridade cristã (teólogos, catequistas, chefes de família).

• O objeto do magistério eclesiástico[7]

Como o ensina Santo Tomás,[8] o objeto do magistério da Igreja é duplo, ou seja, são dois.
primeiro é aquilo de que trata seu ensinamento, a saber, a matéria ou doutrina de fé e de costumes. Mas este mesmo primeiro objeto se divide duplamente. Chama-se objeto primário se se trata das verdades reveladas por Deus explicitamente ou implicitamente, e que foram transmitidas ou pelas Escrituras ou pela tradição. Chama-se objeto secundário se se estende “a todas as coisas que, ainda que não tenham sido explicitamente nem implicitamente reveladas, a juízo da mesma autoridade estejam, no entanto, vinculadas de tal maneira ao revelado, que sejam necessárias para custodiar integramente, explicar cabalmente e proteger eficazmente o depósito da fé”.[9] Particularmente, é parte deste objeto secundário declarar e explicar a lei natural, porque é assumida pela lei divina; e julgar todos os fenômenos religiosos (a santidade dos membros da Igreja, as aparições, as manifestações diabólicas, etc.) que se relacionem com a doutrina revelada.
segundo objeto do magistério são aqueles a quem se dirige seu ensinamento. Aqui o que mais importa é se o ato de magistério se dirige à Igreja universal ou a alguma parte dela (uma diocese, um instituto religioso, uma pessoa).

• Os atos em que se exerce o magistério

Quanto a isto, é preciso fazer antes de tudo uma dupla distinção.
◊ Em primeiro lugar, há que distinguir os atos de magistério autêntico dos atos de magistério pessoal. Uma mesma pessoa, ou seja, o bispo ou o papa, pode ser dotada de dupla autoridade magisterial: uma pessoal, em razão da perfeição com que possua a ciência teológica (como era o caso, por exemplo, de São Gregório Magno ou de Pio XII); outra, comunicada por Cristo, em razão do mandato ou missão recebida: os bispos com relação à sua diocese, o papa como bispo de Roma com relação à sua diocese e como pastor supremo com relação à Igreja universal. Se, portanto, o papa ou o bispo ensinam em virtude de sua ciência teológica, temos um ato de magistério pessoal, ato que se deve julgar como se julga o ensinamento de qualquer teólogo. Se, porém, ensina em virtude do mandato recebido de Cristo, temos um ato de magistério autêntico,[10] ato que deve julgar-se à luz da doutrina sobre o magistério da Igreja.
◊ Além disso, em razão de sua certeza, os atos de magistério autêntico dividem-se em infalíveis e mere (‘meramente’) autênticos. Nos atos de magistério infalível, não pode haver o menor erro, porque são plenamente assistidos pelo Espírito Santo. Se fazem parte do referido objeto primário, devem ser cridos com fé divina; se fazem parte do objeto secundário, devem ser cridos com igual certeza, uma vez que, como dito mais acima, têm vinculação necessária com a doutrina revelada. Mas os atos de magistério mere autêntico, ainda que não assegurados pela infalibilidade, também gozam – em grau diverso – da assistência do Espírito Santo, e portanto exigem “religiosa obediência do intelecto e da vontade”.[11] O grau de autoridade com que os atos de magistério mere autêntico se impõem aos fiéis “resulta principalmente da índole dos documentos, ou da frequente proposição da mesma doutrina, ou do modo de dizê-lo”.[12] Tudo isso deve julgar-se more humano, quer dizer, de modo análogo a como os homens costumam julgar o dito pelos doutores em ciências humanas.[13]
Há porém outras qualificações e distinções dos atos de magistério que nem sempre têm significado preciso.
◊ A definição ex cathedra (‘da cátedra, da cadeira, da sede’) do Romano Pontífice tem sentido perfeitamente precisado pelo Concílio Vaticano I; mas às vezes éindevidamente identificada com o magistério infalível do papa, porque, com efeito, como se verá mais adiante, também podem ser infalíveis ensinamentos não dados à maneira de definição ex cathedra. Além disso, provoca-se confusão quando se toma a expressão ex cathedra fora do contexto da declaração vaticana, porque então pode significar todo o magistério autêntico do papa, infalível ou mere autêntico, dado “da cátedra de São Pedro”, quer dizer, como pastor supremo da Igreja universal. – O significado da expressão ex cathedra também se estende às vezes, por analogia, às definições infalíveis dos concílios ecumênicos, as quais, como também se verá mais adiante, têm as mesmas notas ou qualidades das definições papais.
◊ A distinção entre magistério ordinário magistério extraordinário também é fonte de confusões, e confusões ainda maiores, porque, com efeito, um ato de magistério pode deixar de ser comum ou ordinário de diversa maneira. Geralmente, assinala-se o caráter extraordinário ou solene de um ato de magistério como indicativo de compromisso maior da autoridade magisterial; daí que mais frequentemente ou mais claramente seja ao magistério extraordinário que se dá a nota de infalível. Isso todavia dá ensejo a que se cometa um erro: o de identificar, irrefletidamente, a distinção entre extraordinário e ordinário com a distinção entreinfalível e mere autêntico. Com efeito, trata-se de erro porque nem todo o magistério extraordinário ou solene é infalível, assim como nem todo o magistério dado de modo ordinário é não infalível.[14] – Convém, ademais, notar que o magistério extraordinário por excelência é o dos concílios ecumênicos, uma vez que eles constituem um modo efetivamente fora do comum de exercer a autoridade, e só se reúnem por motivos graves ou sérios. – Quando, por outro lado, tal distinção se aplica ao magistério do Romano Pontífice, carece da mesma precisão. Com efeito, os atos do papa revestem-se de solenidade de modo tão variado, que muitas vezes é impossível decidir se são extraordinários ou ordinários. Neste caso, é frequente reduzir a significação de “extraordinário” ao magistério infalível ex cathedra do papa, o que, como dito e como se voltará a ver, não é isento de imprecisão. 





[1] Relembre-se que os mesmos cinco artigos desta série se subdividirão, em prol da facilidade. – Insista-se, ademais, em que a exposição destes artigos não se fará em ordem estritamente científica (ou seja, das objeções para a resposta e para a respectiva solução daquelas), mas em ordem antes e ainda facilitadora (ou seja, da resposta para as objeções e sua respectiva solução). Mas facilitação não implica que o assunto seja de si fácil, e, com efeito, o assunto tratado nesta série sempre exigirá esforço do leitor. Tal esforço, porém, é condição para uma mais perfeita compreensão da crise instaurada pelo Concílio Vaticano II.  
[2] Ou seja, tanto as autoridades do Concílio como as que o seguem.
[3] Como se vê, está suposto aqui que os papas conciliares são papas de algum modo. Que modo seja esse é o que se dirá no livro Do Papa Herético.
[4] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[5] Insista-se, todavia, em que mestre propriamente dito não é senão Nosso Senhor Jesus Cristo.
[6] É no papa que reside a suprema autoridade apostólica.
[7] Para que se entenda o termo técnico objeto, veja-se como se aplica à linguagem. Com efeito, a linguagem tem dois objetos: um, as concepções mentais significadas pelas palavras; outro, o destinatário da linguagem, ou seja, aquele que ouve ou lê as palavras.
[8] Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 181, a. 3.
[9] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[10] Autêntico vem de authenticus, palavra latina que tem a mesma raiz grega que auctoritas(‘autoridade’).
[11] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[12] Idem.
[13] Ou seja, as ciências alcançáveis pelas próprias luzes da razão humana (as éticas, as naturais, as matemáticas, a metafísica).
[14] Naturalmente, tudo isto voltará a tratar-se nesta série.


FONTE: www.estudostomistas.com.br

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