Carlos
Nougué
Artigo Primeiro
O magistério
conciliar, ou seja, o do Concílio Vaticano II e
dos papas posteriores, definitivamente não
goza do carisma da infalibilidade. Com efeito, há
dois modos de exercer o carisma da infalibilidade: um é extraordinário,
enquanto o outro é ordinário e universal, como se verá pouco
adiante. Conquistadas porém pelo liberalismo, as autoridades conciliares[2] não
quiseram ensinar com infalibilidade segundo o modo extraordinário; e pelo mesmo
motivo seu magistério ordinário não alcança o grau de universal. Desse modo, o
magistério conciliar não é infalível nem poderá vir a sê-lo de maneira alguma, e isso é assim justamente porque as autoridades eclesiásticas
se mantêm em seu liberalismo.[3] Explique-se.
O que se
acaba de dizer pressupõe a doutrina segundo a qual há tão somente dois modos de
o magistério da Igreja ser infalível. Afirmaram-se, ademais, três coisas que
decorrem de algum modo da mesma doutrina. Com efeito, segundo uma ordem de
evidência, a primeira dessas coisas é o fato manifesto de que as autoridades
conciliares não desejaram nem desejam ensinar segundo o modo extraordinário do
magistério da Igreja; a segunda, que resulta dessa mesma atitude, é sua
mentalidade liberal; a terceira, que resulta do mesmo, é que seu magistério
ordinário nunca poderá vir a ser universal. A conclusão, necessária, não só
afirma o simples fato de que não houve infalibilidade no Concílio Vaticano II,
mas assinala ainda que não pode havê-la de modo algum (ou seja, nem
infalibilidade extraordinária nem infalibilidade ordinária universal) enquanto
os papas conciliares não renunciarem à mentalidade liberal. Antes porém de
demonstrá-lo, é preciso insistir nas noções centrais da doutrina referida mais
acima.
Nosso Senhor
Jesus Cristo transmitiu à Igreja o poder de ensinar em seu nome e fundada em
sua autoridade: “Ide e ensinai, porque quem vos ouve, a mim me ouve”. E é a
este mesmo poder comunicado por Cristo que chamamos magistério da
Igreja. É um dom único e permanente, que durará indefectivelmente até ao
fim dos tempos (quer dizer, até à Parusia ou segunda e definitiva vinda de
Cristo). Mas devemos conhecer, com respeito a ele, o sujeito que
participa dele ou a quem é transmitido, o objeto que o
especifica e os atos em que é exercido.
• O sujeito do magistério eclesiástico
O sujeito do
magistério eclesiástico são chamados órgãos ou instrumentos;
e são chamados assim porque, falando propriamente, o poder ou autoridade só o
mesmo Cristo a tem. Cristo é o mestre principal, e qualquer outro possui tal
autoridade apenas como instrumento de Cristo.
Mas, se
consideramos o sujeito do magistério eclesiástico quanto à maneira de
participar da autoridade, é preciso distinguir os órgãos em autênticos e
subsidiários. Os órgãos autênticos participam da autoridade de
Cristo de maneira habitual e própria, enquanto os órgãos subsidiários o
fazem de maneira transeunte (ou transitória) e delegada. Só os
órgãos autênticos podem dizer-se propriamente “mestres” na Igreja.[5]
As pessoas
que constituem os órgãos autênticos são o papa e os bispos. Mas o papa detém a
autoridade magisterial de modo pleno, enquanto os bispos a detêm de modo não
pleno. Se no entanto se consideram tais pessoas com relação a seus atos
magisteriais, devem distinguir-se quatro sujeitos:
◊ o papa com
os bispos reunidos em concílio;
◊ os bispos
dispersos mas em comunhão com o papa;
◊ os bispos
sozinhos.
Com respeito
aos órgãos subsidiários, devem distinguir-se os papais dos episcopais, ou seja,
os sujeitos ao papa e os sujeito aos bispos. Os que recebem delegação
imediatamente do papa (congregações romanas, comissões pontifícias, delegados
apostólicos, etc.) participam mais plenamente do magistério eclesiástico que os
que a recebem dos bispos (padres párocos, conselhos de presbíteros, comissões
diocesanas, etc.). Devem distinguir-se ainda segundo a condição das pessoas,
isto é, se se trata de simples fiéis (peritos em diversas ciências ou artes),
ou se se trata de pessoas qualificadas por qualquer tipo de autoridade cristã
(teólogos, catequistas, chefes de família).
O primeiro é aquilo de que trata seu
ensinamento, a saber, a matéria ou doutrina de fé e de costumes. Mas este mesmo
primeiro objeto se divide duplamente. Chama-se objeto primário se
se trata das verdades reveladas por Deus explicitamente ou implicitamente, e
que foram transmitidas ou pelas Escrituras ou pela tradição. Chama-se objeto
secundário se se estende “a todas as coisas que, ainda que não
tenham sido explicitamente nem implicitamente reveladas, a juízo da mesma
autoridade estejam, no entanto, vinculadas de tal maneira ao revelado, que
sejam necessárias para custodiar integramente, explicar cabalmente e proteger
eficazmente o depósito da fé”.[9] Particularmente, é parte
deste objeto secundário declarar e explicar a lei natural, porque é assumida
pela lei divina; e julgar todos os fenômenos religiosos (a santidade dos
membros da Igreja, as aparições, as manifestações diabólicas, etc.) que se
relacionem com a doutrina revelada.
O segundo objeto do magistério são
aqueles a quem se dirige seu ensinamento. Aqui o que mais importa é se o ato de
magistério se dirige à Igreja universal ou a alguma parte dela (uma diocese, um
instituto religioso, uma pessoa).
• Os atos em que se exerce o magistério
Quanto a
isto, é preciso fazer antes de tudo uma dupla distinção.
◊ Em
primeiro lugar, há que distinguir os atos de magistério autêntico dos
atos de magistério pessoal. Uma mesma pessoa, ou seja, o bispo ou o
papa, pode ser dotada de dupla autoridade magisterial: uma pessoal, em razão da
perfeição com que possua a ciência teológica (como era o caso, por exemplo, de
São Gregório Magno ou de Pio XII); outra, comunicada por Cristo, em razão do
mandato ou missão recebida: os bispos com relação à sua diocese, o papa como
bispo de Roma com relação à sua diocese e como pastor supremo com relação à
Igreja universal. Se, portanto, o papa ou o bispo ensinam em virtude de sua
ciência teológica, temos um ato de magistério pessoal, ato que se
deve julgar como se julga o ensinamento de qualquer teólogo. Se, porém, ensina
em virtude do mandato recebido de Cristo, temos um ato de magistério
autêntico,[10] ato que deve julgar-se à luz da doutrina sobre o magistério da
Igreja.
◊ Além
disso, em razão de sua certeza, os atos de magistério autêntico dividem-se em infalíveis e mere (‘meramente’) autênticos. Nos atos de magistério
infalível, não pode haver o menor erro, porque são plenamente assistidos
pelo Espírito Santo. Se fazem parte do referido objeto primário,
devem ser cridos com fé divina; se fazem parte do objeto secundário,
devem ser cridos com igual certeza, uma vez que, como dito mais acima, têm
vinculação necessária com a doutrina revelada. Mas os atos de magistério
mere autêntico, ainda que não assegurados pela infalibilidade, também gozam
– em grau diverso – da assistência do Espírito Santo, e
portanto exigem “religiosa obediência do intelecto e da vontade”.[11] O grau de autoridade com
que os atos de magistério mere autêntico se impõem aos fiéis
“resulta principalmente da índole dos documentos, ou da frequente proposição da
mesma doutrina, ou do modo de dizê-lo”.[12] Tudo isso deve julgar-se more
humano, quer dizer, de modo análogo a como os homens
costumam julgar o dito pelos doutores em ciências humanas.[13]
Há porém
outras qualificações e distinções dos atos de magistério que nem sempre têm
significado preciso.
◊ A
definição ex cathedra (‘da cátedra, da cadeira, da sede’) do
Romano Pontífice tem sentido perfeitamente precisado pelo Concílio Vaticano I;
mas às vezes éindevidamente identificada com o magistério infalível
do papa, porque, com efeito, como se verá mais adiante, também podem ser
infalíveis ensinamentos não dados à maneira de definição ex cathedra.
Além disso, provoca-se confusão quando se toma a expressão ex cathedra fora
do contexto da declaração vaticana, porque então pode significar todo o
magistério autêntico do papa, infalível ou mere autêntico,
dado “da cátedra de São Pedro”, quer dizer, como pastor supremo da Igreja
universal. – O significado da expressão ex cathedra também se
estende às vezes, por analogia, às definições infalíveis dos concílios
ecumênicos, as quais, como também se verá mais adiante, têm as mesmas notas ou
qualidades das definições papais.
◊ A
distinção entre magistério ordinário e magistério extraordinário também é
fonte de confusões, e confusões ainda maiores, porque, com efeito, um ato de
magistério pode deixar de ser comum ou ordinário de diversa maneira.
Geralmente, assinala-se o caráter extraordinário ou solene de um ato de
magistério como indicativo de compromisso maior da autoridade magisterial; daí
que mais frequentemente ou mais claramente seja ao magistério extraordinário
que se dá a nota de infalível. Isso todavia dá ensejo a que se cometa um erro:
o de identificar, irrefletidamente, a distinção entre extraordinário e ordinário com
a distinção entreinfalível e mere autêntico. Com
efeito, trata-se de erro porque nem todo o magistério extraordinário ou solene
é infalível, assim como nem todo o magistério dado de modo ordinário é não
infalível.[14] – Convém, ademais, notar
que o magistério extraordinário por excelência é o dos concílios ecumênicos,
uma vez que eles constituem um modo efetivamente fora do comum de exercer a
autoridade, e só se reúnem por motivos graves ou sérios. – Quando, por outro
lado, tal distinção se aplica ao magistério do Romano Pontífice, carece da
mesma precisão. Com efeito, os atos do papa revestem-se de solenidade de modo
tão variado, que muitas vezes é impossível decidir se são extraordinários ou
ordinários. Neste caso, é frequente reduzir a significação de “extraordinário”
ao magistério infalível ex cathedra do papa, o que, como dito
e como se voltará a ver, não é isento de imprecisão.
[1] Relembre-se que os mesmos
cinco artigos desta série se subdividirão, em prol da facilidade. – Insista-se,
ademais, em que a exposição destes artigos não se fará em ordem estritamente
científica (ou seja, das objeções para a resposta e para a respectiva solução
daquelas), mas em ordem antes e ainda facilitadora (ou seja, da resposta para
as objeções e sua respectiva solução). Mas facilitação não implica que o
assunto seja de si fácil, e, com efeito, o assunto tratado nesta série sempre
exigirá esforço do leitor. Tal esforço, porém, é condição para uma mais
perfeita compreensão da crise instaurada pelo Concílio Vaticano II.
[3] Como se vê, está suposto
aqui que os papas conciliares são papas de algum modo. Que modo
seja esse é o que se dirá no livro Do Papa Herético.
[7] Para que se entenda o termo
técnico objeto, veja-se como se aplica à linguagem. Com efeito, a
linguagem tem dois objetos: um, as concepções mentais significadas pelas
palavras; outro, o destinatário da linguagem, ou seja, aquele que ouve ou lê as
palavras.
[10] Autêntico vem
de authenticus, palavra latina que tem a mesma raiz grega que auctoritas(‘autoridade’).
[13] Ou seja, as ciências
alcançáveis pelas próprias luzes da razão humana (as éticas, as naturais, as
matemáticas, a metafísica).
FONTE: www.estudostomistas.com.br
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