Carlos
Nougué
Artigo Primeiro
Se o chamado magistério conciliar é infalível (2)
Os dois modos do magistério infalível
Deve-se
proceder agora a uma divisão formal no modo
infalível dos atos de magistério. Pois bem, para ser correta, qualquer divisão
formal deve cumprir dois requisitos:
• antes de
tudo, dividir a essência por diferenças contrárias naquilo que tem de mais
próprio e específico;
• depois,
abarcar todo e qualquer indivíduo dessa essência ou natureza, de maneira que
pertença a um ou a outro membro da divisão.
Explique-se.
a. O caráter de infalibilidade do ato de magistério visa a terminar
com a hesitação do espírito diante da possibilidade de erro de um ensinamento
não infalível: com efeito, quando se ensina com certeza, elimina-se
o receio com que se fica ao concordar com algo ensinado como opinião.
b. Mas tal fim não é alcançado perfeitamente enquanto o ensinado não
se fixar em uma única sentença claramente infalível. Com
efeito, enquanto o ensinado se transmitir mediante expressões diversas ou em
contextos diferentes, sempre permanecerá a dúvida quanto a qual expressão seja
a mais correta ou quanto a como deve ser interpretada.
c. Assim, dos modos como o magistério da Igreja pode ensinar com
infalibilidade, deve considerar-se principal aquele que proponha a verdade em
uma sentença única e garanta assim, isoladamente, a
infalibilidade. Com efeito, quando para reconhecer o caráter de infalibilidade
for preciso relacionar uma série de atos de magistério em que a mesma verdade
se expressa mediante palavras diferentes ou em contextos diferentes, não se
alcança então com a mesma perfeição o que se busca.
◊ Ao
primeiro e principal modo, chamamos magistério infalível extraordinário.
Diz-se extraordinário porque este ato de magistério deve
dar-se com grande solenidade, a fim de deixar patente sua condição de infalível
por si mesmo.
◊ O segundo
modo, em contrapartida, justamente porque pode dar-se de muitas e muito
diferentes maneiras, diz-se magistério infalível ordinário.
Observação importante. Não se
confunda a distinção entre magistérioinfalível e magistério não
infalível (como explicado no item a acima) com a
distinção entre magistério infalível extraordinário e
magistério infalívelordinário (tal como explicado no item b e
no item c acima). Na primeira distinção, com efeito,
“infalível” e “não infalível” são diferenças demagistério, enquanto na
segunda “ordinário” e “extraordinário” são diferenças de infalível (ou
seja, não de magistério). Insista-se, portanto, em que na segunda
distinção se trata de magistério infalível com infalibilidade ao modo
extraordinário ou de magistério infalível com infalibilidade
ao modo ordinário.[1] Tratemo-la
mais detidamente.
1.º Magistério infalível extraordinário
O magistério
infalível extraordinário pode ser exercido tanto pelo papa sozinho
como pelo papa e pelos bispos conjuntamente.
• Pois bem,
é doutrina católica definida (pela constituição Pastor aeternus, do
Concílio Vaticano I) que as condições necessárias e suficientes para que um ato
de magistério papal seja infalível por si mesmo, ou seja, isoladamente, são
quatro: “O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra –
isto é, / (1.ª) quando cumprindo seu cargo de pastor e doutor de todos os
cristãos, define por sua suprema autoridade apostólicaque /
(2.ª) uma doutrina sobre a fé e costumes / (4.ª) deve ser sustentada/
(3.ª) pela Igreja universal –, pela assistência divina que lhe foi prometida na
pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade de que o Redentor
divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre a fé e
os costumes”.
• Mas a
doutrina sobre as condições de infalibilidade do magistério extraordinário do
Papa e dos bispos conjuntamente, ou seja, reunidos em concílio, não alcançou o
mesmo grau de definição. Ainda assim, porém, é possível deduzi-las mediante um
simples raciocínio teológico.
◊ As
referidas quatro condições vaticanas foram estabelecidas
segundo a natureza do exercício magisterial do papa (vide o artigo
anterior desta série): com efeito, quanto ao sujeito, requer-se a suprema
autoridade; quanto ao duplo objeto, matéria (fé e costumes) e ouvintes;
exige-se que o papa se dirija à Igreja universal; e que se pronuncie com
intenção de impor.
◊ Pois bem,
quando o colégio episcopal se reúne sob o papa – ou seja, sob sua cabeça –,
exerce com este um magistério da mesma natureza que o do papa sozinho: porque
goza da mesma infalibilidade que as definições ex cathedra do
Romano Pontífice. Logo, mutatis mutandis as condições de
infalibilidade do magistério conjunto do papa e dos bispos são as mesmasquatro
condições do magistério papal.[2]
Observação 1. Quanto ao sujeito (vide ainda
o artigo anterior desta série), normalmente o Papa e os bispos ensinam
infalivelmente e extraordinariamente quando reunidos em concílio. Em outras
palavras, é nos concílios que se exerce efetivamente seu magistério infalível
extraordinário. Mas que haja reunião local é exigência
puramente material. Se atualmente, com os modernos meios de comunicação, o papa
definisse um dogma com os bispos em suas respectivas dioceses, exercer-se-ia um
magistério infalível extraordinário.[3]
Observação 2. Quanto à intenção, assinale-se
que deve ser julgadamore humano (ou seja, ao modo humano). Quando o
magistério da Igreja propõe verdades à maneira de símbolo de fé como no Credo
dos Apóstolos, ou cânones como no Concílio de Trento, ou ainda uma coleção de
sentenças como no Syllabus de Pio IX, cada uma de tais
proposições é infalível porque se cumprem as quatro condições vaticanas. Quando
porém não se cumprem as quatro condições vaticanas, trata-se de proposiçõesmere (meramente) autênticas.
Com efeito, quando num documento magisterial, em torno das proposições
infalíveis centrais, há outras que são expostas à maneira de discurso científico,
ou seja, explicando e argumentando, deve dizer-se que neste mesmo documento só
são infalíveis as proposições centrais.[4]
2.º Magistério infalível ordinário
• O magistério
infalível ordinário pode exercer-se, como dito, de maneira muito
diferente. Qualquer que seja tal maneira, porém, para que seja de fato
infalível, devem cumprir-se “equivalentemente” ou analogamente as mesmas quatro
condições vaticanas, o que nem sempre é dito pelos que tratam deste
assunto.
◊ Por
exemplo, se todos os bispos ensinaram juntamente com o papa uma mesma sentença,
mas não o fizeram como pastores de suas respectivas dioceses, e sim como
doutores privados (contra a 1.ª condição vaticana), tal sentença não seria
infalível por magistério ordinário universal. Diga-se aliás que, se outros
doutores, de maior autoridade, ensinaram o contrário do que ensina tal
sentença, o mais provável é que os bispos tenham errado.
◊ Se todavia
ensinam em matéria não relativa à fé e aos costumes (contra a 2.ª condição
vaticana), tampouco há infalibilidade.
◊ Se a
sentença é dirigida por um bispo a determinada pessoa em particular, e por
outro a outra pessoa (contra a 3.ª condição vaticana), ainda não há
infalibilidade: justamente porque tal sentença não se dirige à Igreja
universal.
◊ Se o
conjunto dos bispos em comunhão com o papa ensina, por exemplo, que é opinião piedosa
que as almas do purgatório intercedem por nós (contra a 4.ª condição vaticana),
nem por isso essa sentença passa a ser verdade de fé: justamente porque não se
tem aqui intenção de imporesta doutrina como de fé ou em vinculação
com a fé. Poderia até ser um erro, mas um erro que não atenta contra a piedade.[5]
• Quanto à infalibilidade
ao modo ordinário do papa, deve assinalar-se ainda que, na
própria diversidade de maneiras em que pode dar-se, uma característica é comum
a todas: dá-se sempre por repetição de atos. Assim, se basta
um ato único e isolado para que o ensinamento seja infalível, ele pertence ao
magistério infalível extraordinário. O modo ordinário do magistério infalível
do Romano Pontífice exige uma série de atos com relação à mesma
doutrina. Assim, se todos ou muitos papas ensinaram uma doutrina certos de
que é revelada, não podem ter-se equivocado. Se todos os papas seguintes a
determinado erro o condenaram, não podem ter errado. Se um mesmo papa propõe e
repropõe certa verdade ou princípio, ainda que em cada contexto não a tenha
querido afirmar como sentença principal, pode reconhecer-se aí uma intenção de
impô-la como definitiva, o que a tornaria infalível ao modo ordinário.[6]
• Quanto
à infalibilidade ao modo ordinário do magistério do papa e dos bispos
conjuntamente, devemos considerar duas dimensões: a do tempo e
a do espaço. Às vezes, podem cumprir-se as condições da infalibilidade por repetição
de atos no tempo; às vezes, por complementação de atos no espaço; às vezes, por
uma combinação dos dois aspectos. Assim, se desde sempre em alguma diocese
determinadas proposições se conservaram como reveladas, e em dado momento foram
reconhecidas como tais por um papa, e, ademais, ninguém nunca se opôs a elas,
são infalivelmente verdadeiras (tem-se então universalidade temporal).
Se, porém, diante de uma novidade, todos os bispos em conjunto com o papa a
consideram falsa, não podem errar (tem-se entãouniversalidade local).
Se, por fim, uma verdade é afirmada aqui e depois ali, e passa o tempo
suficiente para que o papa e as demais dioceses a fiquem sabendo, e ninguém
afirma o contrário, também se dá infalibilidade por magistério ordinário; e,
neste caso, o tempo supre o que falta à universalidade local (tem-se então universalidade
combinada temporal e local).
Observação. Como decorre do dito, o
magistério infalível ordinário do papa e dos bispos chama-se magistério
ordinário universal.
Conclusões
a. O magistério infalível pode ser exercido de dois modos: de modo
extraordinário e de modo ordinário.
b. O magistério infalível extraordinário é exercido pelo papa tão
somente quando define ex cathedra, e pelo papa e pelos bispos
reunidos em concílio quando definem com solenidade.
c. O magistério infalível do papa ao modo ordinário dá-se por
repetição de atos, e no papa em conjunto com os bispos quando é universal.
[1] É grande, todavia, a
complexidade deste assunto. Para dar um só exemplo, assinale-se que na bulaIneffabilis
Deus somente a sentença dogmática quanto à Imaculada Conceição é
infalível ao modo extraordinário. Voltaremos a tratar tal complexidade.
[2] Assinale-se apenas que não
lhe convém a denominação ex cathedra, ou seja, da cadeira de
São Pedro. Mais conveniente é, portanto, a denominação ex aula, ou
seja, do recinto do concílio reunido sob o papa.
[3] Esta possibilidade,
todavia, apresenta graves problemas teológicos, em especial pela dificuldade
que o papa teria para comprovar a participação real e direta dos bispos. Mas
não é preciso que o aprofundemos aqui.
[4] Às vezes o papa deixa
expresso no texto aquilo a que se dirige plenamente sua intenção, como na bula Ineffabilis
Deus (sobre a Imaculada Conceição), mas às vezes não o faz. Neste
caso, pode ser difícil determinar a que se dirige plenamente sua intenção, e
então se deve considerar não só o texto, mas todas as circunstâncias que
constituem o contexto.
[5] “Não é estranho”, escreve o
Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “que os
problemas novos que se apresentam ao teólogo não possam ser resolvidos com a
aplicação direta de princípios teológicos já estabelecidos e aceitos; e exijam
dele que desenvolva mais a doutrina implícita do magistério para encontrar a
solução. Isso é o que cremos estar fazendo: para solucionar o problema do
magistério conciliar, é preciso levar em consideração que as quatro condições
que o Vaticano I determinou para o magistério infalível do papa devem
estender-se proporcionalmente ao magistério infalível do papa
e dos bispos, seja extraordinário, seja ordinário universal. Como todavia não é
um princípio teológico universalmente reconhecido, nossa questão continua a ser
uma quaestio disputata; mas observe-se que é conclusão
imediata de princípios doutrinais muito firmes.”
[6] São Pio X, por exemplo,
nunca declarou que fosse dogma de fé a restauração de todas as coisas em
Cristo. Por tomá-lo, todavia, como princípio de todos os seus atos de governo,
devemos considerar este princípio como infalivelmente verdadeiro.
FONTE: www.estudostomistas.com.br
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