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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (V)



C. N.

2.º O liberalismo do chamado magistério conciliar

As normas e as instituições vaticanas anteriores ao Concílio Vaticano II eram-no de uma Roma que desde o princípio fora mestra da verdade diante do mundo. Por isso mesmo, aliás, é que não se pôde ver nada de muito especial no breve pontificado de João XXIII, papa não só reconhecidamente tendente ao liberalismo: era, além disso, muito otimista com respeito à situação da Igreja no mundo (contrariamente ao sentir detodos os papas anteriores). Mas a natureza mesma de um concílio ecumênico seria ocasião propícia para transformar tudo isso, razão por que os espíritos mais lúcidos desaconselhavam com firmeza sua convocação: seria como abrir as portas a um liberalismo “católico” já muito forte e muito estendido.
Pois bem, a transfiguração liberal da autoridade suprema deu-se já com as decisões tomadas na primeira sessão do concílio.[1] É verdade que Paulo VI fala de sua própria autoridade de maneira antes tradicional; já aexerce, todavia, de modo efetivamente liberal, além de que, conforme os católicos deixavam de assombrar-se com as novas liberdades que iam adquirindo, o magistério conciliar passou a explicar sua natureza de modo mais aberto. Os princípios liberais tinham sido lançados nos documentos conciliares, e muito prontamente começaram a frutificar. Estava apagada a candeia da cátedra romana.
É o momento, porém, de que mostremos as três diferenças distintivas do exercício da autoridade liberal “católica”.
• Antes de tudo, o próprio e novo “caráter pastoral” do concílio. Com efeito, todos os concílios tinham tido caráter pastoral, o que decorre de que sempre se tinham reunido para resolver sérios problemas do âmbito da Igreja. Mas já a convocação do último concílio anuncia seu caráter pastoralcomo algo radicalmente novo. Ora, a diferença entre o antigo caráter pastoral e o novo reside em que para os pastores tradicionais, de São Pedro a Pio XII, o primeiro cuidado pastoral era a definição dogmática que aqueles sérios problemas requeriam, enquanto para os pastores conciliares nada é mais oposto ao caráter pastoral que a definição doutrinal. De fato, todos os documentos do Vaticano II reafirmam seu caráter “pastoral” justamente para justificar a falta de definição doutrinal. Em verdade, este caráter é o caráter de uma pastoral liberal, que padece o falso conflito entre a autoridade e a liberdade (que já mostramos em outra postagem desta série). E esse mesmo sofisma foi o que freou as tentativas de dissolver as ambiguidades sob as quais se escondiam os princípios liberais.[2]
• Depois vem a nova infalibilidade do sensus fidei (senso da fé). Sempre se ensinou (e repete-o Santo Tomás na Suma Teológica) que o conjunto ou universalidade dos fiéis não pode errar ao professar uma verdade como sendo de fé: dizer o contrário vai contra o dogma da indefectibilidade da Igreja. Mas a infalibilidade dos fiéis é consequência da infalibilidade do magistério, o sujeito único[3] do carisma da verdade indefectível.[4] Ora, o magistério conciliar inverte-o: para ele, o sujeito primeiro e imediato da infalibilidade não é a hierarquia, mas “todo o povo de Deus”, como se lê naLumen Gentium, a carta magna ou constituição desta visão liberal. Insista-se: como sempre dissera a doutrina tradicional, só a hierarquia participa propriamente do sacerdócio de Cristo, e só ela tem então a função de ensinar com o carisma da infalibilidade. Mas a Lumen Gentium sustenta que do sacerdócio de Cristo participa primeira e imediatamente toda a Igreja. Assim, todo cristão, pelo simples fato de ser batizado, já é sacerdote segundo o “sacerdócio comum” e coletivo de todo o Povo de Deus; e, dentro do sacerdócio comum, há diferentes serviços, o principal dos quais é o “sacerdócio ministerial” da hierarquia. Portanto, para o neomodernismo, a função docente pertence primeira e imediatamente não à hierarquia, mas a todo o povo de Deus. Deve fazer-se, no entanto, a seguinte precisão: agora já não se trata propriamente de ensinar – com efeito, ensinar a quem, se todos participam de tal função? –, mas de dartestemunho vivendo a fé diante dos incrédulos. Seria, então, uma função “profética” do “sacerdócio comum”, que goza de infalibilidade comum e que tem por princípio o “senso da fé” e por sujeito, repita-se, a Igreja inteira.[5]
Desse modo, o depósito da fé não teria sido confiado somente aos Apóstolos e a seus sucessores, mas aos “santos”, quer dizer, à “totalidade dos fiéis que têm a unção do Santo”; por conseguinte, o Espírito Santo não assistiria somente à hierarquia com os carismas do magistério infalível, mas a todos, suscitando neles o sensus fidei [senso da fé]. Segundo o neomodernismo conciliar, portanto, como escreve o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “a hierarquia participa da função profética por duas razões, uma geral enquanto simples membros do Povo de Deus que não carecem do senso da fé – ‘desde os Bispos até o último dos fiéis leigos’ –, e outra, especial, enquanto ministros ordenados que ‘guiam’ o Povo de Deus na tarefa comum de conservar, aprofundar e aplicar a fé. Esta função especial a serviço da função ‘profética’ comum não é de menor importância, porque, enquanto a hierarquia não unificar e autenticar o pensamento comum, este não pode dizer-se ‘verdadeira palavra de Deus’”.[6]
Está subordinada, assim, a função do magistério hierárquico à do sacerdócio comum. Mas o n. 25 da Lumen Gentium faz uma síntese perfeita da doutrina tradicional da infalibilidade do papa e dos bispos. Por que o faz? Para que os padres conciliares que estavam inquietos com as novidades dos primeiros parágrafos pudessem tranquilizar-se. Efetivamente, porém, no novo marco do “sacerdócio comum”, todas as expressões clássicas devem ser reinterpretadas, o que o magistério conciliar seguinte ao concílio não perderá oportunidade de fazer explicitamente.
Em suma, para a doutrina católica o poder de ensinar infalivelmente é comunicado por Cristo primeira e imediatamente ao papa, ainda que os bispos e o conjunto da Igreja também participem dele, mas de modo diverso (os bispos de modo ativo, e o conjunto da Igreja de modo passivo). Para a doutrina liberal conciliar, contudo, a função de expressar a fé com infalibilidade (termos que, como visto, adquirem novo significado nesta mesma doutrina) é comunicada por Cristo primeira e imediatamente a toda a Igreja, enquanto a hierarquia apenas participa dela cumprindo o serviço de unificá-la como mediadora.
• Por fim, esse mesmo novo “serviço da unidade”. É verdade que Hans Küng tirará a conclusão, coerente mas extrema, de que já nem sequer é preciso falar de infalibilidade. Por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé vê-se obrigada a publicar a declaração Mysterium Ecclesiae, de 24 de junho de 1973, onde se assinala a doutrina da Lumen Gentium sobre a dupla infalibilidade, “da Igreja universal” e “do magistério da Igreja”.[7]Mas, como diz ainda o Padre Calderón no mesmo livro, sustentar “que o consentimento dos fiéis em pelo menos uma verdade de fé deve ser reconhecido como infalível por seu mero sensus fidei [senso da fé], de maneira anterior à proposição do magistério, já implica negar que o magistério da Igreja seja a regra próxima e necessária da fé. Segundo a verdade católica, Jesus Cristo comunicou somente aos Apóstolos e seus sucessores a autoridade de seu próprio magistério: ‘Quem vos ouve, a Mim me ouve’ (Luc. 10, 16), e só a eles os enviou a ensinar: ‘Ide e pregai o Evangelho, [...] o que não crer será condenado’ (Mar. 16, 15). Se a profissão de fé da universalidade [ou conjunto] dos fiéis pode ser julgada infalível, é porque pressupõe a sanção anterior, ao menos tácita, do magistério; porque o verdadeiro católico não pode nunca estar certo dos pensamentos surgidos em sua meditação enquanto não os vir confirmados pela autoridade da Igreja. Segundo a mentira liberal, em contrapartida, a comunidade eclesial inteira é inspirada e enviada, de maneira que a verdade evangélica surgiria da meditação comum: se todos creem na mesma coisa, a hierarquia tem o dever de sancioná-la. A certeza de seu consentimento é tomada, então, não da pregação exterior das testemunhas autorizadas [...], mas do senso interior da fé em contato imediato com a Verdade substancial”.
Sucede ainda, no entanto, que a Lumen Gentium diz que ao menos às vezes o magistério pode predispor os fiéis ao consentimento – e até exigi-lo! Seria isso uma concessão à doutrina tradicional? De modo algum. A doutrina modernista ou liberal reconhece que a autoridade tem não só uma função unificadora da interpretação comum da Igreja em cada momento, mas também uma função conservadora, para que a comunidade eclesial não perca sua identidade com o passar do tempo.[8]À autoridade competiria, portanto, fazer valer algumas fórmulas chamadas “dogmas” que expressaram a fé comum em tempos passados, fórmulas já sancionadas outrora pela autoridade. Se pois agora o magistério predispõe ao consentimento e até o pode exigir quando a certos pontos, não é por “autoritarismo”, mas porque, “como comunhão de fé, a Igreja é uma comunhão na palavra da confissão; por isso, cabe à unidade da Igreja tanto diacronicamente [ou seja, ao longo do tempo] como sincronicamente [ou seja, agora, em dado momento] também a unidade nas palavras fundamentais da fé [= dogmas] que não são revisáveis, se não se quer perder de vista a ‘coisa’ expressa nelas”.[9] Para o modernismo liberal, por conseguinte, a sanção da autoridade é sempre posterior e dependente do consentimento da comunidade; enquanto, para a doutrina católica, o consentimento universal é sempre, em última instância, posterior e dependente da sanção – ao menos tácita – do Romano Pontífice. 

     (Continua.)





[1] Cf., por exemplo, The Rhine Flows into the Tiber. A History of Vatican II  [O Reno Lança-se no Tibre…], 1.a ed., Nova York, Hawthorn Books, 1967.
[2] Na primeira sessão do concílio, D. Lefebvre assinalou a necessidade de propor textos dogmáticos em que se formulasse a doutrina de modo preciso. Mas sua proposta, segundo ele mesmo, “foi objeto de violentas oposições: ‘O Concílio não é um concílio dogmático, mas pastoral; não queremos definir novos dogmas, mas expor a verdade pastoralmente’”. Cf. Acuso el Concilio, Buenos Aires, Iction, 1978, p. 25; Fr. Pierre-Marie O.P., “L’autorité du Concile”, in Le Sel de la Terre, n. 35, p. 38-39.
[3]  Vide a noção de sujeito ainda numa postagem anterior desta série.
[4] Cf., por exemplo, Ioan. Bapt. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, ed. 3.ª, Romae 1882, Thesis XII; e H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6.ª, Torino 1937, vol. I, p. 450.
[5] “O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo sobretudo com a vida de fé e de caridade e oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, que é fruto dos lábios que confessam seu nome. A totalidade dos fiéis, que têm a unção do Santo, não pode equivocar-se quando crê, e ele manifesta essa prerrogativa peculiar sua mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando desde os Bispos até aos últimos fiéis leigos prestam consentimento universal nas coisas de fé e costumes. Com este senso da fé, que o Espírito de verdade suscita e mantém, o Povo de Deus adere indefectivelmente à fé confiada de uma vez por todas aos santos, penetra-a mais profundamente com julgamento certeiro e dá-lhe mais plena aplicação na vida, guiado em tudo pelo sagrado Magistério, submetendo-se ao qual já não aceita uma palavra de homens, mas a verdadeira palavra de Deus” (Lumen Gentium, n. 12; destaque nosso).
[6] Cf. Novo Catecismo da Igreja Católica, n. 889. – Mas, insista-se, se o conjunto ou universalidade dos fiéis não pode errar, não é senão porque tão somente é “guiado” pelo magistério, mas sobretudo e essencialmente porque a Igreja discente sabe o que é de fé pela voz da Igreja docente (ou seja, do magistério infalível da Igreja).
[7] Segundo a nova doutrina, deve-se falar de uma “dupla infalibilidade” porque cada uma tem um princípio diferente e independente: a infalibilidade da Igreja funda-se na virtude da fé, enquanto a do magistério se funda nos poderes de ordem e de jurisdição, cuja raiz última é o caráter sacerdotal. A nova teologia, é claro, não quer reconhecer o que se acaba de afirmar, porque sabe que a tradição fala de umaúnica infalibilidade, e por isso tentou unificar, justamente ao modo modernista, tal princípio com a doutrina do “sacerdócio comum”. Mas, quando se pergunta aos novos teólogos qual é o princípio ou raiz do sacerdócio comum, a fé ou o caráter batismal, “a resposta”, como escreve o Padre Álvaro Calderón, “perde-se numa indefinida multidão de opiniões contraditórias. São as belezas do pluralismo teológico atual”.
[8] Cf. São Pio X, Encíclica Pascendi, Dz 2095* (antiga numeração): “Seguindo mais de perto a mente dos modernistas, diremos que a evolução [do dogma] surge do conflito de duas forças, das quais uma tende ao progresso, a outra à conservação. A força conservadora reside com todo o seu vigor na Igreja e é contida na tradição; exerce-a, porém, a autoridade religiosa, e isso tanto de direito, dado que entra na natureza da autoridade salvaguardar a tradição, como de fato, pois a autoridade, limitada pelas mudanças da vida, não se sente nada ou quase nada exigida pelos estímulos que impelem ao progresso. Vemos aqui, Veneráveis Irmãos, como ergueu a cabeça uma doutrina perniciosíssima que furtivamente introduz na Igreja os leigos como elementos de progresso. De uma espécie de convênio e pacto entre essas duas forças, a conservadora e a progressiva, quer dizer, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem os progressos e as mudanças. Porque as consciências dos indivíduos, ou algumas delas, agem sobre a consciência coletiva, e esta sobre os representantes da autoridade, obrigando-os a pactuar e a ater-se ao pactuado”.

[9] Comissão Teológica Internacional, “La interpretación de los dogmas”, em Documentos 1969-1996, Madri, BAC, 1998, p. 449.

FONTE: www.estudostomistas.com.br

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